Menstruei pela primeira vez aos 11 anos. Recordo-me que sempre tive períodos dolorosos e abundantes que duravam mais de uma semana.
Mas o pior eram as dores que não se limitavam às moinhas normais. Os dois primeiros dias eram sempre os piores. Muitas cólicas abdominais acompanhadas por espasmos que iam e vinham sem pré-aviso e que me tolhiam o corpo. As dores surgiam de repente e eram tão fortes que eu chegava a suster a respiração. A sensação era a de que ao mínimo movimento poderia desmair e cair para o lado. Sentia os músculos presos. Todo o corpo preso. Tudo me doia da cabeça aos pés. Chegava a andar curvada porque simplesmente não me conseguia endireitar. As dores eram tantas que nem com muitos analgésicos e alguns sacos de água quente desapareciam. Aliviavam, mas não se iam embora.
Por tudo isto, as minhas visitas ao ginecologista começaram cedo.
Consultei vários médicos e as respostas que ouvia eram invariavelmente as mesmas.
"Isso é normal". "Há mulheres que têm mais dores que outras, mas isso com a idade vai passar". "Quando for mãe isso desaparece".
Com a idade as dores não passavam. Pareciam-me cada vez piores. Mas fazia regularmente os exames e as ecografias e tudo parecia estar bem.
Por volta dos 19 anos comecei a tomar a pílula e embora as dores tivessem diminuído ligeiramente, elas não davam tréguas naqueles primeiros dias.
Nesses dias em que estava menstruada era um terror ir à casa de banho. As dores chegavam a ser tão incapacitantes que me sentia desfalecer. Ficava branca, com suores e tonta.
Era um sacrifício conseguir urinar. Levava minutos. Não conseguia despejar a bexiga de uma só vez num jato contínuo. Eu tinha de fazer tudo às pinguinhas, ao mesmo tempo que fazia exercícios de respiração. As dores eram demasiado agudas para conseguir fazer as coisas de outra maneira.
Os anos foram passando sempre com o medo da próxima menstruação. No mais íntimo de mim, e apesar de os exames indicarem estar tudo bem, eu sentia que não estava.
Aprendi a suportar silenciosamente a dor e a saber lidar com ela. A pouco e pouco fui deixando de fazer queixas aos médicos. Segundo eles, isto haveria de passar...
E os anos foram passando até Julho de 2008.
Tinha acabado de casar há 3 meses e estava no fim de mais um ano letivo, longe de casa. Bem perto do Porto.
Já faltavam poucos dias para regressar definitivamente a Lisboa e esperar por nova colocação em Setembro.
Um ano que tinha sido particularmente difícil estava finalmente a chegar ao fim.
Num desses últimos dias, jantava uma francesinha na Madalena, quando de repente comecei a sentir-me empanturrada, cada vez pior, tão mal que acabei por vomitar tudo antes do jantar terminar. Nem sei como depois disso consegui conduzir e chegar a casa. Eu estava sem forças nenhumas.
Uma noite mal dormida e acordo no dia a seguir completamente partida, como se tivesse levado uma tareia. Sentia-me ao mesmo tempo entupida.
Bebi um chá e obriguei-me a comer meia carcaça e fui de novo para a escola. Sentia-me inchada.
Nesse dia voltei para casa à hora de almoço, mas antes passei pela padaria. Comprei uns pães frescos e com muito esforço lá voltei a empurrar mais meia torrada com chá pela goela abaixo.
Sentia-me mesmo mal e com calafrios.
Enfiei-me na cama e passei aí toda a tarde e noite. Entre a posição de deitada e sentada, fui tentando corrigir alguns relatórios de estágio dos alunos. Sentia-me agoniada.
Não voltei a comer. Não me apetecia comer nada. Não tinha fome. E mais um dia se passou e não havia meio de me sentir melhor. Nas idas à casa de banho limitava-me a urinar.
No terceiro dia, eram já horas do jantar e recebo a visita da minha tia. Que sorte ter uma tia a viver ali perto. Sabendo que eu estava adoentada fez-me o mimo de levar o jantar e eu mais uma vez só consegui aguentar a comida no estômago alguns minutos. Sentia-me cada vez mais fraca.
Depois de muita insistência, lá me convenceu a ir às urgências. Primeiro passei pelo centro de saúde. Ainda na sala de espera vomito o que já não tenho. Tudo o que eu tinha já eram só sucos gástricos.
O médico vê-me rapidamente e manda-me de imediato para as urgências do hospital.
Chego ao Hospital de Santo António e prontamente sou atendida.
Tenho a barriga muito inchada.
Exames e mais exames, duas colonoscopias extremamente dolorosas que me arrancam gritos dilacerantes de dor. Acho que vou rebentar ali.
Mais um tempo de espera e chega a resposta de que tenho uma estenose extrínseca na parte sigmoide do intestino, ou seja, uma oclusão intestinal.
É urgente ser operada. Estou sedada há dois dias e a rebolar numa maca pelos corredores do hospital. Parece-me que nada daquilo é real. Ouço as vozes, as queixas e as histórias dos doentes que vão e vêm. Há um corropio e um burburinho constante. Uma loucura. Já perdi a noção do tempo e até de espaço. Só sei que estou no hospital. Talvez seja um pesadelo...
No segundo dia, vem um médico ter comigo. Diz-me que tenho de ser operada rapidamente e que tive muita sorte em ter chegado ao hospital a tempo. Faz-me assinar um termo de responsabilidade, que eu mal consigo ler. Tenho dificuldade em reconhecer as letras e em encontrar-lhes sentido. Diz-me que é provável que fique colostomizada por uns meses.
Não sei do que fala, tenho dificuldade em perceber o que me diz. O meu cérebro está anestesiado com tanta sedação e dor. Percebo muito à pressa que vou usar um saco para as fezes. Não tenho tempo para digerir a informação, nem para racionalizar nada. Sou apenas um corpo doente. Naquele momento só quero que tratem de mim como acharem melhor. Façam o que entenderem. Estou demasiado vulnerável para dizer ou achar seja o que for. Não tenho domínio sobre mim e estou totalmente entregue nas mãos de outros. Eu só não quero morrer.
Entretanto a minha mãe e o P. já chegaram ao Porto e ainda consigo falar qualquer coisa com eles antes de entrar para o bloco.
Sou operada, numa cirurgia que ainda leva algumas horas.
Devido ao meu quadro clínico e à distensão abdominal, a equipa médica toma a decisão de fazer uma laparotomia (cirurgia de barriga aberta) exploratória, com corte do intestino e colocação de colostomia sem encerramento do procedimento cirúrgico. É reprogramada nova cirurgia para revisão e encerramento definitivo após 48 horas.
Saio do bloco e dou entrada nos cuidados intensivos ventilada com um prognóstico muito reservado e com uma barriga aberta. O risco de contrair uma infeção é enorme e a família é advertida de que as coisas podem não correr bem. Durante a cirurgia foram encontradas células estranhas na parede do intestino, e tudo indica que foram as responsáveis pelo "estrangulamento" do órgão. Foram cortados e enviados para análise 15 cm de intestino. As tais células poderão ser de origem cancerígena, é importante que a família esteja preparada para tudo.
As coisas felizmente correm bem e volvidas as tais 48 horas, retorno ao bloco e fazem-me uma relaparotomia (nova reintervenção) para revisão e encerramento definitivo da cirurgia.
Depois do recobro, finalmente acordo ao fim de muitos dias na enfermaria já colostomizada e com um penso vertical com quase dois palmos de mão, da minha mão. A família está contente e emocionada por me ver e eu tão grata por ter família e eles estarem ali comigo. São a minha vida e o meu amor por eles é infinito!
Um ou dois dias depois o resultado da análise chega. Eu não sei de nada, não estou a par de nada. A suspeita de ter células cancerígenas não se confirma. Trata-se de uma endometriose intestinal profunda. Células do endométrio desenvolveram-se nas paredes do intestino e aquando das menstruações também estas células sangram. Não tendo o organismo forma de expelir esse sangue, formaram-se ao longo dos anos cicatrizes sobre cicatrizes que lentamente foram empurrarando o intestino até o desfecho ser este.
A endometriose, palavra e doença nova para mim até então, era afinal o motivo das dores terríveis que tinha todos os meses.
Entretanto, passei a viver com um saco colado à pele. Tive sessões com enfermeiros e outros técnicos de saúde para aprender como devia doravante lidar com a minha nova condição e tratar da minha higiene pessoal.
Foi uma fase complicada, de negação ao princípio, muito difícil. Em pouco tempo passei a ter de fazer uma vida normal. Só vários meses depois voltei a fazer nova laparotomia para reconstruir o trânsito intestinal.
E eu poderia continuar a escrever esta história que não acaba aqui...
Aqueles que me seguem há muito tempo sabem que este blog não é um diário dos meus dias nem a expressão de pensamentos avulsos que vou tendo sobre isto ou aquilo. O registo é outro.
No entanto, tudo quanto escrevo e partilho aqui não é ficcional, é real e faz parte da minha vida, como esta história que deixou marcas profundas que a passagem do tempo nunca conseguirá apagar.
Este episódio e a endometriose profunda que tenho mudou-me a vida, mudou-me a visão que tenho do que me rodeia, dos outros, dos acontecimentos, dos planos e projetos que tinha e que tenho.
Pensei muitas vezes se haveria de publicar esta história aqui. Para quê partilhar algo de tão íntimo aqui no blog? Qual o interesse?
Agora já está! Não há nada a fazer. Foi publicado.
A intenção não é que lamentem o que me aconteceu, que tenham pena de mim, que me achem uma coitadinha, etc... Dispenso todas essas manifestações pesarosas, que agora até seriam piegas.
Aliás, eu neste momento já não lamento nada do que me aconteceu. O que aconteceu tem-me ensinado muito.
Não tenho nada a ganhar em expor-me, mas posso ajudar outras mulheres com o meu testemunho. Sinto que tenho esse dever. O dever cívico e moral de partilhar a minha história. Não é para alarmar, porque todas as histórias de endometriose são diferentes.
Há casos mais graves e mais complexos que o meu e há casos em que a doença está lá e é assintomática.
Mas espero que casos como o meu não voltem a acontecer por maus diagnósticos, por falta de interesse ou desconhecimento médico e por ignorância da paciente.
Ter dores muito fortes e outros sintomas de grande mau estar durante a menstruação não são normais e nem vão passar assim por obra e graça do espírito santo.
Apesar de ser uma doença ginecológica, a endometriose pode atingir vários outros órgãos, como o intestino, a bexiga, os pulmões e até o cérebro.
É uma doença crónica e quando não é diagnosticada, controlada e vigiada pode causar danos irreparáveis, tanto ao nível do aparelho reprodutor feminino, como outras situações tão ou mais graves para a saúde.
Quem sofre desta doença sabe do que falo. Ela não dá tréguas, nem descanso. É uma doença silenciosa que não é um cancro mas que se comporta como tal. Alastra e corrói-nos as entranhas.
Felizmente a minha história não me impede de achar que sou uma sortuda. Sou mesmo. Se vos contasse o meu historial clínico com 36 anos, acho que tinha matéria para uma pequena enciclopédia. Cicatrizes? Sou uma colecionadora. São as minhas marcas de guerra, as mais extraordinárias tatuagens que podia ter.
A endometriose já me fez verter muitas lágrimas, mas também me tem mostrado o quão forte eu sou capaz de ser nos momentos mais críticos. Não deixo que me roube o sorriso e a alegria, porque a vida está aí à minha espera, como sempre esteve desde o início. Eu não me esqueço e agradeço esse milagre e cada lição particular que me tem dado.
Obrigada!