Naquele dia, que prometia ser um dia quente de
outono, chegámos cedo ainda antes da hora marcada. Estacionámos o carro e
confirmámos a morada. Era ali. Aguardámos a chegada da equipa da Segurança
Social que nos acompanhou durante o processo. O coração começava a bater forte.
Era hoje.
Finalmente chegaram. E nós lá seguimos
em comitiva para o interior onde nos aguardava a restante equipa que ainda não conheciamos.
Entre outras coisas, contaram-nos que com o nervosismo
a tua noite tinha sido mais agitada e tinhas feito xixi na cama. Sorrimos. Eu e
o teu pai sorrimos. Também nós se fossemos crianças... Aliás, eu estava ali
naquela sala cheia de nervos miudinhos a consumirem-me por dentro e sabe deus o
reboliço que me ia na barriga.
Àquela hora o centro de
acolhimento estava vazio de crianças. Já tinham ido todas para a
escola, exceto tu que aguardavas a nossa chegada.
Eu não imagino o teu coração quando
a campainha tocou. Tu já sabias que estávamos para chegar e que assim que a campainha tocasse seríamos nós.
Disseram-nos que embora estivesses
muito excitado e muito contente com a ideia de teres pais, a tua reação num primeiro encontro poderia ser muito diferente do expectável. Poderias retrair-te.
Recusares aproximar-te de nós. Ficares em silêncio. Chorares. Mil e um cenários…
Era melhor estarmos preparados. Enquanto adultos teríamos de ser nós a dar o primeiro
passo e a pouco e pouco conquistar a tua confiança.
E chegou a hora. A psicóloga que te
acompanhou encaminhou-nos para a sala dos brinquedos. De sorriso franco e meigo
pediu-nos que ficássemos à vontade e que aguardássemos um bocadinho que tu já
vinhas.
Nessa altura o coração já empurrava o peito para a frente. Já não tinha sítio onde
pudesse caber. Naquele momento senti que já estava fora de mim e era maior do
que eu. Eu nunca vivi um parto, mas vivi o momento em que te conheci, em que tu
finalmente nasceste para mim. Para nós. E não há palavras que possam descrever o que se sente e o que se vive.
Primeiro ouvi-te os passinhos
apressados a descer as escadas. E nós ali de pé à tua espera, sem saber muito
bem o que fazer e onde pôr as mãos. Porque nunca se sabe. Nunca se sabe nada nestes momentos...
E
de repente a porta abre e num segundo tu olhas para nós e corres em direção ao
teu pai e abraçá-lo.
A tua cara e a tua cabeça coladas ao corpo dele à procura
do colo, do aconchego. Os teus braços pequeninos a quererem abraçar o pai, naquele abraço tão apertado que não chegava para tanto tamanho.
E nesse instante eu pus-me de
cócoras para ficar do teu tamanho. Ainda abraçado ao pai tu voltaste-te para mim. O pai também se pôs de cócoras. Naquele momento éramos todos tão pequeninos perante a grandeza e os mistérios da
vida, daquilo que nos estava a acontecer.
Tu olhavas para mim e não dizias nada. Era um olhar brilhante, doce, tão cheio de ternura. Não desviaste o
olhar. Olhaste-me nos olhos como que a gravar no teu olhar a minha cara. E eu gravei as tuas
linhas, os teus olhos castanhos. Grandes. Num segundo, concentrei-me na tua respiração, fixei-me na tua boca pequenina e tão minuciosamente desenhada e perguntei-te:
“Sabes quem somos?”
E tu timidamente respondeste baixinho: “É a
mamã e o papá!”.
Fiquei sem conseguir engolir.
Abracei-te e tu abraçaste-me. E eu beijei-te e ficámos ali os três abraçados
num abraço urgente. E assim de repente nasceste e abriu-se em mim a força desse
abraço que abraça o mundo. Ali tu, a tua presença, tomou conta do meu coração materno, acabadinho de nascer. Ali eu
nasci para ti, tua mãe. E tu para mim, meu tesouro sagrado, meu mistério
fecundo.
Pegaste-nos pela mão aos dois e
guiaste-nos para a rua naquele teu jeito ingénuo e confiante de quem sabe tudo o que havia a fazer. As crianças sabem tudo. Os adultos não sabem nada. E nós fomos
contigo. Tu tão pequeno e tão crescido.
Começaste a fazer bolas de
sabão e ensinaste-nos ali a sermos o que tu querias que nós fossemos. E já éramos todos a fazer bolas de sabão redondinhas, leves, transparentes
e passageiras...
(imagem retirada da internet)
E tu rias. Rias tanto.
Nunca mais vou esquecer o teu riso e o som do teu riso, enquanto olhavas para
nós e corrias atrás das bolinhas, como se corresses atrás de minúsculos
arco-íris. E vinhas de novo, sempre de novo abraçar-te a nós. O que é a
felicidade? Quem sabe mais sobre a felicidade do que as bolinhas de sabão e a
criança que corre atrás delas? Essas bolinhas, pequenas e singelas metáforas da
vida.
Nas minhas memórias, guardarei
para sempre o teu riso e o teu sorriso dentro de uma bolinha de sabão.
Ali rimos contigo. Rimos contigo
de verdade. E tudo ali foi verdade de tão simples e autêntico que foi. Como aquelas bolinhas de sabão cintilantes e
molhadas, cheias de risos e doces gargalhadas, cheias de cores a moverem-se e a
dançarem ao vento. Ali dentro de cada uma delas o nosso mundo, a explodir de
verão em pleno mês de outubro.