Faz hoje 4 meses que chegaste ao lugar que sempre te esperou.
Chegámos de
dia enquanto havia luz natural dentro de casa porque a noite é feita de medos,
de sombras, de silêncio e solidão.
Apresentámos-te todos os cantos. Cada
uma das divisões e, a grosso modo, as regras de cada uma. Até tu chegares, nunca tinha pensado a fundo nas regras tão intrinsecamente associadas a cada canto, e o quanto elas são importantes para
que a casa funcione na cadência perfeita da vida de cada família.
É que ninguém nasce ensinado a
viver numa casa e quando já temos alguns palmos de altura e muitos centímetros de pensar, isto tem muito que se
lhe diga.
Nesse mesmo dia fui buscar a
Cereja que tinha passado a semana na casa dos avós. Tu estavas cheio de
curiosidade de conhecer ao vivo a Cereja. Já tinhas perguntado por ela no
Centro de Acolhimento. “Porque é que a Cereja não veio?”, questionaste tu. Só a
conhecias por fotografia do Álbum de Família.
Tu adoras cães. Adoras animais no
geral. Isso facilitou como complicou. Deu para os dois lados. A relação nos primeiros
dias não foi fácil de gerir. A Cereja sentiu imensos ciúmes. Não tolerava
saltos, correrias, barulhos mais estridentes. Estava habituada a pacatez de uma
casa que terminou no dia em que chegaste.
Desconfiada, ladrava-te, corria atrás
de ti para te agarrar. Não foi fácil. Tu eras um intruso que
alteraste a dinâmica da vida de toda a gente. Rapidamente percebeu que já não
era o centro das atenções. Sentia-se desconfortável, stressada, insegura
na tua presença. Estava sempre alerta. Protetora dos donos. Bem vistas as
coisas, não houve tempo para uma preparação prévia da tua chegada. Ela percebeu
que de repente uma divisão de arrumos ficou vazia e num estalar de dedos se
transformou num quarto. Percebeu a nossa azáfama, a nossa ansiedade, mas pouco
mais...
Mesmo nesses momentos, tu nunca ganhaste medo. O que não ajudou nadinha. É que
se percebesses o perigo, a insegurança, conseguirias ser mais prudente,
cauteloso. Mas não! És sempre o mesmo. Isso preocupou-nos
muito nos primeiros dias. Como é que íamos resolver esta questão?
Foi difícil, e em certos momentos
ainda é, ensinar-te que tens de saber respeitar o espaço da Cereja. Que há
regras que importa não esquecer e que se não forem aplicadas ela pode reagir na
defensiva e ser perigoso.
Com paciência, com firmeza e
assertividade, conseguiu-se que a Cereja percebesse que tu não eras um perigo e
que o lugar dela nunca esteve ameaçado.
Hoje são os melhores amigos das
brincadeiras. A amizade, o amor que têm um pelo outro é simplesmente incrível.
De encher o coração.
Também se chateiam. Ela contigo. Tu com ela. Mas adoram-se e já não vivem um sem o outro.
Quando a mãe ralha porque tu
fazes ouvidos moucos ou fizeste das tuas ou não fizeste o que era suposto, ela mete
o bedelho e ralha contigo também. Mas também te protege. Cobre-te de beijos,
mima-te. E quando tu fazes das tuas, desculpas-te que foi a Cereja. E quando
apareces com um arranhão novo que sabemos que foi ela, tu escondes o delito e
dizes que foi outra coisa qualquer. A vossa cumplicidade é enternecedora.
Sim, o início da vossa relação não foi
cor-de-rosa, mas hoje é azul da cor do céu com um sol de primavera bem ao
centro a fazer crescer o vosso amor-perfeito.

Dos livros... alguns livros de
histórias esperavam por ti na tua mesa de cabeceira. Histórias
para te ajudar a dormir quando fosses para a cama e a mãe ou o pai te embalassem no ritmo das palavras que fazem sonhar. Durante muito tempo
nenhuma destas história foi suficientemente cativante, interessante, sugestiva. E os livros continuaram ali, por ler. A única história que pedias era a
tua. A tua história. E tu ias buscar o teu álbum e pedias que te contassem a
tua história antes de adormecer. Sempre da mesma maneira, sem mudar uma vírgula, porque tu estavas
ali a ouvi-la muito atento. E a qualquer infração, qualquer desvio, tu feito polícia, metias a tua história na ordem. Não, não. Não é assim! Conta lá outra vez! Foi
assim, noite após noite. Era a tua história que tu querias ouvir. Essa sim, a
mais cativante, a mais interessante e verdadeira.
O teu álbum, o teu tesouro,
como tu o chamas, está guardado numa das gavetas da mesa de cabeceira. Tem uma
gaveta só para ele. Vive ali sozinho, porque nada é suficientemente valioso
para lhe fazer companhia.
Durante os dois primeiros meses recusavas-te a falar do Centro de
Acolhimento.
Tocávamos no assunto e tu rapidamente partias para outro. Deixaste de te lembrar dos nomes dos teus
amigos, das pessoas que cuidaram de ti. Como se fizesses questão de esquecer ou não lembrar. Medo de doer? Medo
de nos fazer doer se nos dissesses que tinhas saudades? Dificilmente saberemos
o que te ia na cabeça e no teu coração de menino. Só não querias falar.
Um dia a mãe disse-te que sentir saudades é bom e que podemos enviar abraços e receber abraços quando precisamos muito. E isso era possível com o
botão do amor. Um coração desenhado no topo da mão, junto ao dedo polegar. Tu
ouviste-me muito atento e não disseste nada. Algum tempo depois, vieste ter
comigo e pediste baixinho: “Mãe, podes desenhar aqui um coração?” e apontaste
para o lugar certo na tua mão. Tu começaste a perceber que não havia mal, nem
ninguém ficaria triste, desapontado, que tu sentisses saudades de um lugar que foi teu, que é
parte da tua história.
E a pouco e pouco tu foste tranquilizando
e percebendo que aconteça o que acontecer, mesmo nos momentos difíceis, no meio
de uma teimosa e intempestiva birra tua, esta é a tua casa, este é
o teu lugar para sempre e o amor por ti é inquestionável. A tua vida passou a morar aqui, no nosso coração. Para
sempre.
E agora já és tu que espontaneamente
falas dos teus amigos de lá, de coisas que lá fazias, de coisas que te lembras. Sem medos, sem receios e de coração aberto.
As coisas foram mudando, tu foste mudando...
Em 4 meses são tão grandes as
mudanças que já aconteceram em ti que o sentimento é que já passaram anos. Comparo
as tuas primeiras fotos e as atuais e vejo, vê-se, como até as tuas feições
mudaram.
E o que tu já falas? É
impressionante o salto que tu já deste na forma como te expressas. Sim, existir
um atraso na comunicação oral é um problema muito comum em meninos institucionalizados, tantas vezes vítimas da privação de estímulos fundamentais para o seu
desenvolvimento integral. Os teus progressos são incríveis. A tua capacidade de
autocorreção é admirável. A tua inteligência e perspicácia deixam-me
diariamente boquiaberta. Passaste a ter um dicionário. Uma estratégia lúdica que arranjei para guardar as
tuas palavras. Tu já pedes para eu escrever as tuas expressões e ao lado a
forma correta. Até já te ris de ti próprio. Muitas delas já dizes bem. Outras
continuam ainda a ser difíceis. Mas devagarinho se vai ao longe. E a brincar vamos
tratando de coisas sérias. É tão fascinante ver-te crescer. Sinto o maior
orgulho em ti, o maior orgulho em nós. Saber que pude mudar o curso da tua
vida. Que podes ser muito mais. Que posso dar-te asas para voares todos os voos
que a tua liberdade conseguir.
Estes meses têm sido muito intensos,
emocionalmente intensos. Repletos de coisas novas, de muitas aprendizagens, imensas
alegrias, alguns medos, inseguranças, mas sobretudo de muito amor. A chave é
mesmo o amor. O nosso amor. É ele o farol nas nossas vidas. Aquele que nos
ilumina o caminho. A travessia. É o amor o responsável pelo que nos aconteceu.
A ti e a nós. Foi ele que nos levou ao coração uns dos outros. E quando isto
acontece, não há lugar para desencontros.
Mesmo naqueles momentos em que erro
uma e outra vez porque sou humana e tropeço. Tropeço em mim, quando tento dar o
melhor mim e não sei como faço. E vou aprendendo à medida que vou desfazendo os
nós e começo a fazer laços. Porque desde que chegaste que o meu coração mudou
nas voltas que o mundo deu para te encontrar. Passaste a morar lá dentro, nesse
lugar que cresce pra dentro e que aperta sempre que vais cair e eu estou ao teu lado para te
segurar.